quinta-feira, 22 de setembro de 2016

637 - Uma homenagem que demorou a acontecer pela dor que em todos deixou

Meu muito amado filho Estêvão

Na tua cabeca de menino daqui a uns anos talvez já não tenhas memória da Biza Lili. Mas ela terá sempre de ti.
Em vida dela, ela beijou-te, amou-te, riu-se de ti e contigo, deixou-te coisas que mais tarde vais apreciar. Ela partiu. Tu sabes que ela partiu. Sabes que ela está a descansar e a olhar por nós e eu vou-te deixar aqui a homenagem que li no funeral da minha avó tua biza que embora já tenha passado um tempo só agora consegui escrever.

Doi os olhos a alma a saudade que tenho de abraçar a minha avó. Mesmo.
Tens tanto dela, como eu. A vontade de ser feliz, o riso, o aproveitar tudo o que a vida nos dá com verdade e respeito ao proximo.

Saudade


Como disse alguém, quando se parte em direção ao Senhor com 100 anos não se faz um funeral mas sim uma homenagem e é uma pequena homenagem que quero deixar aqui à minha avó.
Todos aqui guardamos uma ou mais memória da avó Lili, da tia Lili, da mãe Lili, da biza Lilia e da dona Lili.
Não conheço ninguém para quem faça mais sentido o texto Itáca do que para a minha avó.


Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito. tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

Constantino Kabvafis (1863-1933)
in: O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz.


100 anos de caminho. E que caminho?!
Os netos são como heranças: quem é avó ou avô ganha-os sem merecer. Sem ter feito nada para isso e de repente caem lhe do céu... É como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimónio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto. O neto é, realmente, o sangue do sangue, o filho do filho, mais que filho mesmo...
Eu quero aqui agradecer à minha avó três coisas fundamentais.
Obrigada avó pelo tempo que me deste. Contigo eu aprendi que ser avó não é ser ajudante dos pais é ser avó e isso significa deixar marcas na alma. Quem ajuda os pais é baby-sitter, quem leva e trás os netos da escola é a carrinha, tu foste avó de dares tempo, jamais te esquecerei por isso mesmo, levaste-me à Gulbenkian a concertos, a bailados e no intervalo davas-me um sumo de laranja, sempre me destes mais gelados dos que a minha mãe sabe que deste… e isso será sempre o nosso segredo, levaste-me a praia, falamos de coisas muito importantes como quem eram os meus antepassados, ensinaste-me a rezar o terço como quem crê mesmo, como quem quer ser ouvido, ensinaste-me a aproveitar o melhor da vida sempre de sorriso nos lábios e dentes lavados, ensinaste pelo exemplo a fazer valer a pena viver e lutar até ao ultimo segundo por estar viva e aproveitar a vida no total. Obrigada por não teres sido a ajudante dos meus pais mas sim verdadeiramente a minha avó. Ensinaste a minha mãe a ser avó para o Estêvão, uma avó como tu que dá tempo, que leva a praia e ao teatro e fala sobre as estrelas e as plantas e quem são as pessoas que nos fizeram e já cá não estão.
Obrigada avó por me ensinares a importância de um colar de perolas, de um sorriso na cara e da mágica palavra “obrigada”. Obrigada pelo exemplo que a tua vida foi para mim.
Mesmo magra e doente como estavas ultimamente não me vou esquecer mais das últimas gargalhadas que destes há 15 dias quando o Estêvão te visitou e rebolava por cima da cama a ver os desenhos animados na cama do lado!
E os beijos que davas? E as festas que pedias? Sempre serás lembrada.
A última coisa que te quero agradecer é o facto de me teres amado como eu sou como esta Ana que recebeste de neta, acho que tinhas o maior orgulho da Inês e meu e como deve ter sido difícil entender o pensamento de 2016 quando se nasceu em 1915. Mas tu fizeste-o primorosamente.
Há um pouco de ti na Madalena, no Estêvão e no Vasco e isso é maravilhoso porque é assim a vida, um eterno caminho. Um dia a Madalena vai por um colar de perolas e vai ficar chique como tu ficavas, o Estêvão vai dar gargalhadas com os olhos como tu davas e o Vasco vai dar beijos deliciosos e a semente que cá deixaste já terá dado frutos.
Descansa em paz e olha por nós e como diz alguém muito mais sábio que eu …. Agora com a avó no céu é que a festa vai começar!
Termino com um texto que gosto muito.

A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do Caminho.
Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês,
eu continuarei sendo.
Dêem-me o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.
Vocês continuam vivendo
no mundo das criaturas,
eu estou vivendo
no mundo do Criador.
Não utilizem um tom solene
ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.
Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.
Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.
A vida significa tudo
o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora
de suas vistas?
Eu não estou longe,
apenas estou
do outro lado do Caminho...
Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi.
Henry Scott Holland



Não se passou ainda um dia desde que partiste que não pense em ti durante o meu dia. Sei que estas bem junto de Deus e dos teus mas por cá deixaste saúde imensa.





Amo-te demais

Tua mãe

Um comentário:

1052 - Carta a um filho de um pai (que não sou eu mas podia ser)

 Meu muito amado filho Estevão  Hoje do escritor Pedro Chagas Freitas [carta ao meu filho] Promete-me. Promete-me que vais tentar. Que vais ...