Meu
muito amado filho Estêvão
No
outro dia estávamos juntos a ver “a minha série preferida” …. Que é como quem
diz a série portuguesa “Conta-me como foi” e tu reparaste que eu fiquei triste
quando na série o Toni embarcou para Moçambique para a guerra em novembro de
1973. Perguntaste-me o que eu tinha e eu disse que estava só cansada mas não é
bem bem assim.
Eu
sempre fico “emocionada” quando o assunto é jovens e a guerra de Africa.
Sempre.
Fica
aqui para memória futura.
Quando
o assunto é guerra seja ela presente ou passada é por si só um assunto triste.
Guerra é horrível, guerra é sempre mau, a guerra faz sempre lembrar quem morre
por causa disso. A guerra é uma inutilidade por si porque ninguém ganha e todos
perdem.
Não te
vou falar sobre a história desta guerra em particular, da chamada guerra
colonial, há com certeza dezenas de pessoas, livros, sites na internet que te
podem explicar tudo tudo o que se passou na guerra colonial. Mas vou-te dizer
que na minha opinião a guerra colonial foi uma guerra mais inútil que as outras
todas, uma guerra que estava perdida antes de começar e uma guerra que envolveu
pessoas que só conheciam Angola, Moçambique e etc dos livros de geografia da
escola e pagaram com mais do que a vida pela politica internacional deste pais.
O meu
pai, o teu avó Francisco fez a guerra de africa, a tal a colonial. O teu avó
Francisco foi como o Toni para Moçambique, o teu avó Francisco era um recém
licenciado em agronomia como o Toni era em direito que o que sabia de
Moçambique é que era um pais em africa bem bem bem maior que a “metrópole”, o
teu avó Francisco como o Toni e como centenas de jovens da idade deles não eram
militares de “carreira” eram rapazes, jovens que fizeram a “tropa” uns meses e
lhe puseram uma arma (G3) na mão e os mandaram para africa em barcos e aviões.
Foram para a Guiné, foram para Moçambique, foram para Angola e foram… foram e
muitos não voltaram, e outros voltaram mas na realidade não voltaram e outros mais-valia
não terem voltado.
Não
consigo sequer imaginar o que é ter-se 20 e tal anos estar a estudar ou não e
receber uma carta para se apresentar em Mafra para a formação militar sabendo
que meses depois o caminho era um só: Africa. Não consigo imaginar o que era receber
a ordem de ir mesmo…. De ir… que medo devia dar, que medo mesmo daquele que faz
latejar o interior dos ouvidos, e que medo para o pai e a mãe, para a esposa e
para os filhos. Que mãe vê ir um filho para uma guerra e não fica destruída! Que
coragem meu Deus dar assim um filho a uma guerra que nenhum sentido fazia.
Muitos
fugiram muitos muitos. Não vou aqui falar sobre se é cobardia ou coragem fugir,
porque só Deus sabe o que eu faria se fosse eu a ter de ir. Mas o que aqui
importa é que o teu avó Francisco assim como o teu tio avó José não fugiram …
os dois foram para a tal guerra lá longe em Africa e da minha parte isso sempre
me vai emocionar isso sempre será motivo de eu admirar os dois. E muito.…. Não
pelo que lá fizeram nada disso mas porque foram apesar do medo imenso que
deviam sentir.
Em
minha casa nunca houve um álbum de memórias da guerra, nunca houve as reuniões
dos soldados que lá estiveram na guerra, nunca houve conversas sobre a guerra.
Nunca. Houve uma caixa com unhas de leões e tigres e dentes de leão e elefante
e cornos de onix, duas estatuetas de negros e umas capulanas que a minha mãe
usava em vestidos. Isso era o que havia como marcas dessa estadia em africa.
Sempre
soube que o meu pai combateu em Moçambique, não sei por onde andou até porque o
que sempre ouvi foram as historias que a minha mãe que por lá também andou
contava: da praia, dos peixes, da comida. Não te sei dizer porque nunca lhe
falei sobre isso, não te sei explicar porque nunca me sentei e lhe perguntei
“Pai tiveste medo?”, não te sei explicar porque é que até hoje nunca perguntei
ao teu tio-avó José como é que eles dois tiveram coragem de ir, gostava de lhe
perguntar como era o meu pai antes de ir para a guerra, gostava mas nunca
perguntei. Nada nunca.
Por
medo. Medo mesmo. Queria ter perguntado se ele sabia porque é que ia para
africa. Sabias por que é que ias?
Sentiste medo? Pensaste que ias morrer? Em que é que isso te mudou? …. Queria
tanto ter perguntado tudo isto…. Não perguntei por respeito, pelo mesmo
respeito que não pergunto ao irmão dele ainda hoje as mesmas perguntas.
“Pai mataste-te alguém?” …. Não é pergunta que
se faça mas eu independentemente da resposta pensaria exatamente o que penso
hoje…. Uma guerra inútil que marcou uma geração de maneira que eu que já nasci
depois de tudo passar ainda hoje o coração se me aperta quando vejo imagens desses
“Tonis” que diziam adeus aos pais no cais de embarque e lá iam sem saber se e
quando voltariam.
É passado mas é parte do meu passado que aqui
te deixo.
Com o passar o tempo há uma tendência quase
natural em fazer julgamentos sobre o que se passou no passado… “se fosse eu
fazia assim ou assado”…. Para mim penso hoje exactamente o que pensava a
primeira vez que me lembro de pensar nisto… tenho um brutal orgulho do meu pai,
não pelo que fez na guerra que nem sei o que foi tão pouco, mas pelo facto dele
ter ido apesar do medo imenso que devia sentir, apesar de provavelmente ver a
inutilidade dessa guerra.
Também nunca lhe disse isso…. E devia ter dito,
devia mesmo ter-lhe dito isso. Dar-lhe um abraço e dizer-lhe “Pai tenho orgulho
em ti.”
E pronto.
Amo-te demais
Tua mãe
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