domingo, 6 de março de 2016

622 - A guerra

Meu muito amado filho Estêvão

No outro dia estávamos juntos a ver “a minha série preferida” …. Que é como quem diz a série portuguesa “Conta-me como foi” e tu reparaste que eu fiquei triste quando na série o Toni embarcou para Moçambique para a guerra em novembro de 1973. Perguntaste-me o que eu tinha e eu disse que estava só cansada mas não é bem bem assim.
Eu sempre fico “emocionada” quando o assunto é jovens e a guerra de Africa. Sempre.
Fica aqui para memória futura.
Quando o assunto é guerra seja ela presente ou passada é por si só um assunto triste. Guerra é horrível, guerra é sempre mau, a guerra faz sempre lembrar quem morre por causa disso. A guerra é uma inutilidade por si porque ninguém ganha e todos perdem.
Não te vou falar sobre a história desta guerra em particular, da chamada guerra colonial, há com certeza dezenas de pessoas, livros, sites na internet que te podem explicar tudo tudo o que se passou na guerra colonial. Mas vou-te dizer que na minha opinião a guerra colonial foi uma guerra mais inútil que as outras todas, uma guerra que estava perdida antes de começar e uma guerra que envolveu pessoas que só conheciam Angola, Moçambique e etc dos livros de geografia da escola e pagaram com mais do que a vida pela politica internacional deste pais.
O meu pai, o teu avó Francisco fez a guerra de africa, a tal a colonial. O teu avó Francisco foi como o Toni para Moçambique, o teu avó Francisco era um recém licenciado em agronomia como o Toni era em direito que o que sabia de Moçambique é que era um pais em africa bem bem bem maior que a “metrópole”, o teu avó Francisco como o Toni e como centenas de jovens da idade deles não eram militares de “carreira” eram rapazes, jovens que fizeram a “tropa” uns meses e lhe puseram uma arma (G3) na mão e os mandaram para africa em barcos e aviões. Foram para a Guiné, foram para Moçambique, foram para Angola e foram… foram e muitos não voltaram, e outros voltaram mas na realidade não voltaram e outros mais-valia não terem voltado.
Não consigo sequer imaginar o que é ter-se 20 e tal anos estar a estudar ou não e receber uma carta para se apresentar em Mafra para a formação militar sabendo que meses depois o caminho era um só: Africa. Não consigo imaginar o que era receber a ordem de ir mesmo…. De ir… que medo devia dar, que medo mesmo daquele que faz latejar o interior dos ouvidos, e que medo para o pai e a mãe, para a esposa e para os filhos. Que mãe vê ir um filho para uma guerra e não fica destruída! Que coragem meu Deus dar assim um filho a uma guerra que nenhum sentido fazia.
Muitos fugiram muitos muitos. Não vou aqui falar sobre se é cobardia ou coragem fugir, porque só Deus sabe o que eu faria se fosse eu a ter de ir. Mas o que aqui importa é que o teu avó Francisco assim como o teu tio avó José não fugiram … os dois foram para a tal guerra lá longe em Africa e da minha parte isso sempre me vai emocionar isso sempre será motivo de eu admirar os dois. E muito.…. Não pelo que lá fizeram nada disso mas porque foram apesar do medo imenso que deviam sentir.
Em minha casa nunca houve um álbum de memórias da guerra, nunca houve as reuniões dos soldados que lá estiveram na guerra, nunca houve conversas sobre a guerra. Nunca. Houve uma caixa com unhas de leões e tigres e dentes de leão e elefante e cornos de onix, duas estatuetas de negros e umas capulanas que a minha mãe usava em vestidos. Isso era o que havia como marcas dessa estadia em africa.
Sempre soube que o meu pai combateu em Moçambique, não sei por onde andou até porque o que sempre ouvi foram as historias que a minha mãe que por lá também andou contava: da praia, dos peixes, da comida. Não te sei dizer porque nunca lhe falei sobre isso, não te sei explicar porque nunca me sentei e lhe perguntei “Pai tiveste medo?”, não te sei explicar porque é que até hoje nunca perguntei ao teu tio-avó José como é que eles dois tiveram coragem de ir, gostava de lhe perguntar como era o meu pai antes de ir para a guerra, gostava mas nunca perguntei. Nada nunca.
Por medo. Medo mesmo. Queria ter perguntado se ele sabia porque é que ia para africa. Sabias por que é que ias? Sentiste medo? Pensaste que ias morrer? Em que é que isso te mudou? …. Queria tanto ter perguntado tudo isto…. Não perguntei por respeito, pelo mesmo respeito que não pergunto ao irmão dele ainda hoje as mesmas perguntas.
“Pai mataste-te alguém?” …. Não é pergunta que se faça mas eu independentemente da resposta pensaria exatamente o que penso hoje…. Uma guerra inútil que marcou uma geração de maneira que eu que já nasci depois de tudo passar ainda hoje o coração se me aperta quando vejo imagens desses “Tonis” que diziam adeus aos pais no cais de embarque e lá iam sem saber se e quando voltariam.
É passado mas é parte do meu passado que aqui te deixo.
Com o passar o tempo há uma tendência quase natural em fazer julgamentos sobre o que se passou no passado… “se fosse eu fazia assim ou assado”…. Para mim penso hoje exactamente o que pensava a primeira vez que me lembro de pensar nisto… tenho um brutal orgulho do meu pai, não pelo que fez na guerra que nem sei o que foi tão pouco, mas pelo facto dele ter ido apesar do medo imenso que devia sentir, apesar de provavelmente ver a inutilidade dessa guerra.
Também nunca lhe disse isso…. E devia ter dito, devia mesmo ter-lhe dito isso. Dar-lhe um abraço e dizer-lhe “Pai tenho orgulho em ti.”

E pronto.

Amo-te demais

Tua mãe


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